Sangue frio

O rádio ligado. O pai ouvia atentamente enquanto cortava lenha no quintal de casa. A mãe com a blusa suja de carvão na beira do fogão de lenha enquanto acendia o fogo para cozinhar o almoço do dia. Tocava-se moda de viola caipira, lembranças do tempo de mocidade do casal, os primeiros encontros e as memórias de um tempo que ficou para atrás. Tudo não passava em vão, a vida não era assim tão previsível. Os dois eram parte de uma época em que não existia mais, a época passou e o que permaneceu foi a vontade de continuar vivo nas memórias de tempos que não existem mais.
A felicidade no olhar do homem ao ouvir a moda de viola, a cada machadada na lenha o suor escorria pelo corpo ora parava e depois continuava batendo com toda a força, levou as lascas e colocou abaixo do fogão para facilitar quando a mãe fosse cozinhar. Cansado, sentou-se em uma cadeira de balanço e após o corpo esfriar um pouco pegou um copo com água gelada e sentou-se na mesma cadeira observando a mãe cozinhar.
— Maria, você reparou que nasceu os pintinhos da galinha?
— Não reparei não, Jão, quando foi isso?
— Foi ontem, eu vi os pintinhos nascendo. A galinha é arisca e não deixa chegar muito perto. Disse João.
— Ah mas você tem tempo de sobra para reparar em tudo, né véi. Eu fico o dia inteiro fazendo serviço, faço uma coisa e outra. Você só tira o leite das vacas, corta lenha e nem capinando o quintal direito você está.
— E ocê Maria, ocê só faz as coisas aqui dende casa e faz mais nada.
— Eu sou muié e ocê é homi. Eu num guento fazer serviço pesado, cê sabe véi.
— Eu sei Maria e é por isso que cê tem que parar de reclamar. Cadê teu fi, aquele bicho preguiça?
— O fi também é teu, fala direito homi. Deve tá dormindo.
— Dormindo? Já é mais de dez hora, véia. Vou já chamar ele para levantar. Era para ter me ajudado a prender o gado no curral e tirar leite hoje de madrugada, tive que fazer tudo só e cê ainda me pôs a lascar lenha.
— Deixa de frescura homi! Tu ainda tem força e pode trabaiar.
— Raimundo! Ô Raimundo! Acorda seu vagabundo! Disse o João chamando o filho em tom de brincadeira.
— O véi, que saco pai, me deixa dormir. Disse o Raimundo de dentro do seu quarto espreguiçando-se.
— Aqui em casa ninguém dorme até essa hora, tu tá cansado de saber. Isso é hora de homi tá trabalhando e não deitado feito uma maricota.
— Ah Pai, ontem foi eu quem tirou o leite das vacas. Eu mereço descansar também.
— Tu vive descansando, quer mais descanso ainda? Por favor, não se faz mais homi como no meu tempo, meu pai colocava eu e meus irmãos para trabaiar na roça desde cedo. Nós cresceu e viramos esses cabra macho que não tem tempo ruim. Os homi de hoje fica chei de friscura.
— Ai Pai, para. O senhor sabe que isso ficou na década de 1960 porque hoje em dia a sociedade está moderna. Homens e mulheres tem os mesmos direitos.
— É mais aqui em casa nós não adere a modernidade.
Raimundo, levantou-se, foi tomar um banho e escovar os dentes. Entrou na cozinha, viu que já era a hora do almoço. Enquanto isso Maria permanecia calada somente prestando atenção na rádio. Então, pôs a comida na mesa. Disse: - A comida está pronta, quem quiser comer que come.
Atentos prontamente ao que tocava-se no rádio, veio uma sensação muito boa de conforto ao escutar as notícias locais. Antes que todos estivessem á mesa e prontos para o almoço veio um barulho de latidos ardentes do velho Pingo que latia insistentemente avisando que algum estranho estava na porta.

Sem muita demora foi o seu João ver quem era. Do lado de fora da porteira do sítio havia um homem maltrapilho, com roupas sujas e um saco nas costas, desdentado e portando em seus braços pulseiras artesanais e em seu pescoço um colar comprido com um pingente parecendo algum tipo de amuleto da sorte.

O homem cabisbaixo acanhado como quem estava esperando ser notado e acolhido sem precisar dizer palavra alguma. O João ao vê-lo aproximou-se e pediu para que entrasse. O homem em contrapartida pediu-lhe comida e água para que pudesse seguir sua viagem.

Pela insistência de João o homem entrou dentro do sítio, sentou-se debaixo de um pé de coco e disse que iria esperar ali enquanto o João iria buscar a comida e a água em casa. O João por sua vez foi dentro de casa, falou com o Raimundo para que ficasse conversando lá fora com o homem enquanto a mãe preparava a comida para o homem comer. A Maria estava arrumando a marmita apreensiva pensando em quem poderia ser aquele homem que aparecera subitamente em sua propriedade. Rapidamente veio pensamentos em sua mente: "Será que é algum bandido?" "e se tiver fugindo da polícia?", "Por que será que o homem maltrapilho está vindo de pé? Boa gente não pode ser, nós estamos correndo risco." Concluiu a mãe.
Enquanto a Maria pensava sobre quem poderia ser esse sujeito que veio lhe pedir comida, debaixo do pé de coco estava o homem junto com Raimundo que a essas horas havia especulado todas as informações que poderia tirar do homem. Descobrira que o homem era um tal de Gonçalo, morador durante anos em uma cidade chamada Andorinha, há muitos quilômetros de distância dali, o homem tinha uma vida cigana, passara por muitas vilas e cidades. Nos seus olhos havia muita sombra e um olhar obscuro de tristeza e cansaço. Olhou para o rapaz e proferiu as seguintes palavras: — Dê-me tua mão, jovem. Eu quero te dizer algo.
Raimundo assustado, nervoso e com medo e receio de entregar a sua mão. Até que o homem estendeu as mãos e tocou no jovem que lhe deu a mão. O homem pegou a mão do rapaz e fez desenhos com o dedo como quem estava adivinhando algo. Virou a cabeça e olhou no fundo dos olhos do rapaz e disse-lhe:
— Está selado. Wis ditulis. Você vai seguir o seu destino e nada vai mudar isso.
O jovem apreensivo e boquiaberto sem reação disse: - O que isso quer dizer, Wis ditulis??
— Está escrito, é uma palavra em javanês que diz que o seu destino está selado. Não há como correr do que há de vir, meu jovem.
— Senhor, eu não estou sabendo o que quer dizer com isso? Pode ser mais claro, por favor?
— Não. A voz me disse para te dizer somente isso.
— Você ouve vozes?? O que elas dizem? Respondeu o rapaz assustado e com a mão no coração em gesto de muito espanto.
— Sim, porém só me diz o que querem e quando querem. Não há mais nada para te dizer.
O jovem Raimundo mudou de cor, ficou tão pasmo, quase passou mal e quis cair de tanta moleza no seu corpo. Não estava esperando por isso. Em sua mente estavam muitas perguntas especulando para si mesmo o motivo de um estranho que nunca lhe vira antes na vida proferir aquelas palavras indicando algum tipo de profecia, premonição ou algo assim sobre a sua vida futura.
O João chegou com a comida e entregou para o homem a marmita acompanhada de uma garrafa de água. Reparou na cara do filho e perguntou se estava tudo bem, o rapaz disse que estava, não quis alarmar sobre o que ouvira do homem mas ao mesmo tempo era difícil disfarçar tamanho espanto. 
O homem abriu a marmita e ali mesmo comeu, os dois ficaram ali esperando o homem comer a comida com ele até que acabasse. Mesmo após acabar a única palavra que o homem proferiu foi: "Obrigado pela comida. Que Deus abençoe vocês." Retirou-se, andando devagarinho para a sua jornada, provavelmente estava indo para algum lugar muito longe, ele havia contado para o rapaz que estava indo percorrer toda a América Latina de pé para cumprir uma promessa que havia feito para salvar a sua neta que havia nascido com um sério problema de saúde, não conseguia explicar ao certo qual era o nome da doença e como afetada ela.
Encostados na porteira, Raimundo e João olhavam o homem indo até desaparecer na estrada sem deixar vestígios de que estivera por ali, os dois se entreolharam. Raimundo contou para o seu pai o que o homem havia lhe dito, o pai incrédulo disse que não era para levar em conta o que o homem disse até por ser apenas um coitado que não falava coisas aleatórias e sem qualquer sentido. A mãe dentro de casa durante esse tempo, não quis nem conhecer a fisionomia do sujeito que apareceu em seu terreno. Ouvia a rádio enquanto almoçava sozinha. O marido e o filho voltaram para dentro de casa almoçar.
"Atenção! Notícia urgente. Anunciamos agora a fuga de um bandido muito perigoso que acabou de escapar da cadeia. O homem é criminoso, matou duas famílias em Andorinha e está solto. Se você ouvir falar dele, ter notícias ou se por acaso aparecer em sua casa ligue urgente para a polícia no número 190, nós iremos tomar as devidas providências. A fisionomia do homem é branco, cabelos lisos e castanhos escuros, nariz fino e magro, tem rugas em seu rosto devido a idade de quarenta e cinco anos. A estatura é de 1,80 e possui dentes amarelados. Se você por acaso reconhecer em algum lugar ou se aparecer em sua porta chame imediatamente a polícia pois estarão correndo risco. O nome dele é Max Thayler"
Eles ouviram nervosos o noticiário, não podia ser aquele homem que apareceu e foi embora porque era um homem de pele negra e cabelos pretos, não possuía todos os dentes e não mais do que quarenta anos, vestia trapos e seria incapaz de enganar alguém. Ficaram aliviados, continuaram a almoçar. Com a barriga cheia ficaram com vontade de descansar, o pai foi deitar no chão do quarto e a mãe em um velho sofá que havia na sala. O filho deitou-se em seu quarto mesmo.
O sono estava profundo, o silêncio que pairava naquele sítio, era possível sentir a brisa e o frescor vindo de encontro com aqueles corpos deitados e aliviados de um cansaço de uma rotina que não permitia mudanças da vida pacata. Possuíam muitos sonhos, queriam ter algum dia uma vida melhor, quem sabe comprar um lote maior ou quem sabe construir uma casa no lugar do barraco em que habitavam, queriam que a vida fosse melhor e nessa impossibilidade eram melhores diante da vida. A pobreza não corrói o ser humano de bem, que apesar da vida sofrida e dos enormes esforços para sobreviver a cada dia, ouvia-se a mãe cantando e o pai sorrindo, o filho fazendo piada e assim era a rotina deles. 
Após o sono. O pai foi atrás de selar o cavalo para olhar as vacas no outro lado do sítio, na parte de trás, era muito longe e isso levava muito tempo para chegar até lá. Após o cavalo estar selado, o filho não quis que o pai fosse. "—Deixa pai, eu vou no seu lugar, fica em casa que eu vou." O pai não achou ruim, até por o filho poderia olhar a situação da cerca na parte de trás e ainda olhar se não havia nenhuma vaca com bezerro ou machucada por lá. 
Raimundo foi de encontro ao gado do outro lado do sítio, não estava preocupado com nada. Ele só queria saber se estava bem. Após muitas cavalgadas ele conseguiu chegar, logo de cara viu uma cerca quebrada, teve que descer e ir observar de perto, os gados estavam invadindo o terreno do vizinho. Teria que voltar para buscar ferramentas e consertar a cerca.
Bateu com o pé para ver se a madeira ainda aguentaria ou se era preciso colocar outra no lugar, enquanto olhava o arame e a forma como o gado conseguiu imprensar e derrubar a cerca, um homem apareceu misteriosamente, provavelmente já estava o observando. "Quer ajuda vizinho?" O homem branco e que tinha uma aparência muito peculiar de regiões frias no País.
— Eu vou precisar ir em casa primeiro buscar algumas ferramentas para consertar isso. Pelo visto o gado está bem mas eu tenho que consertar isso aqui.
— Eu tenho algumas ferramentas na minha caixa ali. Disse o homem apontando para a sua caixa de ferramentas azul que estava debaixo de uma arvore perto de sua mochila.
— O senhor é o dono desse sítio?
— Sou sim, eu estou aqui tomando conta do gado e vendo a situação das cercas como você, sabe como é, a gente não pode deixar tudo desmoronar para depois cuidar. O mais louco da vida é que a gente nunca sabe o que nos espera quando vamos para a batalha sozinhos.
— Verdade senhor, eu sou sitiante e eu tenho um pouco de gado da minha família que nos ajuda a sustentar. Eu vou aceitar suas ferramentas, pode me alcançar alguma para consertar isso aqui?
— Eu vou, só um momento. Disse o homem. Por que um rapaz jovem como você está aqui ao invés de estar na cidade, casado e com três filhos?
— Quem vai cuidar dos meus pais, senhor? Eu tenho que ajudá-los pois sou filho único.
— Se você morrer agora quem vai cuidar deles? Disse o homem com a expressão fria, pegou de dentro de sua roupa uma chave de fenda e tacou no peito do rapaz que caiu ensanguentado no chão e gemendo de dor.
A frieza com que o Max o matou demonstrava sua falta de sentimento e empatia com a humanidade. Desde quando decidira ser um assassino não poupava nenhuma vida que lhe aparecera pela frente. Fugira a pouco tempo da cadeia e estava caminhando sem norte afim de encontrar um lugar para morar. 
No outro dia o pai de Raimundo foi em busca do paradeiro do filho, encontrou o corpo jogado no chão. Chamou a polícia que seguiam rastros para capturar Max de volta. Cidade pequena, não havia muitas possibilidades dele continuar foragido se continuasse por ali, logo conseguiram encontrá-lo em uma estrada deserta caminhando em busca de um esconderijo. 

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